Dívida cobrada por ex-marido é embargada por ser entendida como violência de gênero

Dívida cobrada por ex-marido é embargada por ser entendida como violência de gênero

27/02/2023

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações do Migalhas)


Atualizada em 02/03/2023

A 42ª Vara Cível de São Paulo julgou procedente um pedido movido por uma mulher para embargar dívida cobrada pelo ex-marido, oriunda de suposto empréstimo simulado.

Segundo os autos, a mulher mantinha contrato de mútuo com a empresa administrada pelo ex-cônjuge, que postulou a execução da dívida após a separação.

O juiz que analisou o caso destacou que a tese da empresa embargada é irrefutável. “O contrato que baseia a execução é mútuo formalmente assinado pela embargante, na qualidade de pessoa capaz para os atos da vida civil”, afirmou.

Constatou-se em juízo que o contrato tratava-se de simulação para desviar patrimônio em desfavor de credores, servindo como objeto de chantagem, por parte do homem, para evitar o fim do casamento.

Decisão notável

Alice Birchal, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG, explica que a decisão é notável porque foi dada em um processo civil, no qual o julgador “percebeu a questão de gênero mesmo não sendo uma demanda penal ou de família”.

“O problema não é a cobrança da dívida, mas a origem dela. A Lei Maria da Penha (11.340/2006) é uma lei federal e prevê cinco formas de violência doméstica, entre elas a patrimonial. Assim, ela pode ser aplicada em todos os casos em que fique caracterizada a coação do marido, companheiro ou parente homem contra a mulher”, explica a magistrada.

Ela observa que o juiz do caso percebeu uma dupla violência de gênero. “A primeira foi forçar a mulher a assinar o documento. E a segunda ocorreu quando o ex-marido executou a dívida e é aí que entra a análise da circunstância em que a dívida foi cobrada: após o divórcio entre as partes”, aponta.

A desembargadora avalia que uma decisão como esta é importante porque, ao interpretar as circunstâncias diante da Lei Maria da Penha, ela demonstra, na prática, como fazer isso.

“Espero que uma decisão como esta se torne um paradigma, um exemplo, um norte para que todos nós, em todas as áreas, apliquemos a Lei Maria da Penha sob a perspectiva de gênero”, defende. “É primordial que os advogados e advogadas comecem a demonstrar e requerer que se aplique o Protocolo do CNJ nos julgamentos em que haja desequilíbrio material ou processual entre as partes, exatamente porque, em determinados casos, a mulher ‘está’ hipossuficiente.”

Busca pela equidade

O Protocolo a que Alice Birchal se refere é o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Lançado em 2021, ele busca capacitar e orientar a magistratura para a realização de julgamentos, com diretrizes que traduzam um novo posicionamento, com maior equidade entre homens e mulheres na Justiça.

Com 120 páginas, o documento traz explicação de conceitos, apresenta casos e detalha um passo a passo para que os magistrados não interpretem os casos concretos com parcialidade ou marcados pelo machismo estrutural. O texto ressalta ainda a influência do sexismo, do racismo e da homofobia em todas as áreas do Direito, não se restringindo à violência doméstica.

“A partir da prática jurídica surgida pelas questões impostas pela Lei Maria da Penha, os processos se restringiam às questões penais, uma vez que as vítimas buscavam medidas restritivas. Não raro, nestes processos penais, surgem questões acerca da guarda de filhos, alimentos e partilha patrimonial. Embora a Lei Maria da Penha preveja tais proteções, os juízes penais, por razões técnicas, não decidem tais questões”, ela explica.

Conquista jurídica

“Também se percebeu que, em outras ações, principalmente propostas nas Varas de Família, os magistrados julgavam em igualdade de partes quando visivelmente, em certas circunstâncias, a mulher estava processualmente hipossuficiente em relação ao homem. Os juristas especializados na Lei Maria da Penha perceberam essas situações práticas e as levaram ao CNJ”, ela afirma.

A publicação é fruto dos estudos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho instituido pela Portaria 27/2021 para colaborar com a implementação das políticas nacionais estabelecidas pelas Resoluções 254/2018 e 255/2018 do CNJ relativas ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário, respectivamente.

“O ‘Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero’ serve exatamente para que nós, julgadores, tenhamos uma perspectiva de gênero ao julgar”, afirma.

Leia mais: Cinco pontos importantes sobre o enfrentamento da violência de gênero


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